Opinião

O cavalo possuído – por Fátima Nascimento

Uma tarde, o meu pai chegou a casa e disse que um senhor o tinha convidado para visitar a sua quinta. Nós iríamos também. A minha mãe, que arrumava a cozinha, franziu o cenho. Não lhe agradava ideia. O meu pai insistiu. O homem precisava de ajuda! Um amigo do meu pai falara ao senhor do grande espírito da filha. Apresentara o problema ao meu pai. Este, sempre pronto a ajudar, aceitara. Talvez pudessem perceber o que se passava com o animal. Lá fomos.

O céu primaveril mostrava um céu tingido de nuvens. A quinta ficava na ponta norte da vila, não muito longe do prédio onde vivíamos. O acesso era íngreme e entrámos num portão largo. De um lado, a casa e, a alguns metros da mesma, a cavalariça.

Depois de uma visita rápida pela quinta, os nossos passos desviaram-se para o alvo da nossa visita – a cavalariça. Era um edifício moderno, espaçoso e arejado. Os fardos de palha encostados à parede precediam as baias onde os cavalos dormitavam na penumbra. O corredor abria-se à nossa frente. Do lado direito, dois animais mansos tiravam partido da calma da tarde. Mais à frente, do lado oposto um cavalo solitário. Aproximámo-nos. O cavalo soltou um relincho nervoso enquanto os olhos poisados em mim, pareciam querer solar-se das órbitas. Os adultos calaram-se tentando perceber o eu se passava. O nervosismo do animal acentuava-se. Os olhos pareciam colados à coroa da minha cabeça. O meu pai, frustrado, não conseguia perceber o problema que enlouquecia o animal. O homem concordou aparentemente rendido também. Continuaram a conversar ignorando os relinchos enfurecidos do animal. Foi então que percebi, pela minha visão lateral, que o homem se concentrava na minha pessoa. A minha mãe, incomodada com o ruído ensurdecedor do animal, caminhava para a saída. Eu não me conseguia mexer. Uma força invisível imobilizava-me. O terror ameaçava tomar conta de mim. A voz do animal parecia forçar a sua entrada no meu corpo. Algo em mim se debatia tanto quanto aquele animal. Era como se uma força saísse do animal e tentasse entrar em mim! Um duelo estranho e desigual. O olhar do homem colava-se intensamente também em mim enquanto o meu pai conversava distraidamente com ele. Finalmente, o homem descontraiu o corpo num gesto de desistência. Encaminhámo-nos rapidamente para o exterior. A minha mãe passeava meditativa. O homem despediu-nos rapidamente. Tinha um compromisso. Reencontrámos, sozinhos, o portão. O pequeno Mini esperava-nos.

De regresso a casa, os meus pais conversavam enquanto viam o filme espiritual da visita à quinta. A minha mãe não gostara da visita. Até que perceberam algo de estranho na atitude do homem. Ele percebera o que se passava com o animal! Mais! Ele tentara passar a energia incómoda, que perturbava o animal, para mim! Os meus pais entreolharam-se, horrorizados! Eu bem que não queria ir, dizia a minha mãe, algo me dizia que não era boa ideia! O meu pai ainda não se recompusera da descoberta feita.

Olha o que aconteceria à miúda, volveu ele, com uma perplexidade horrorizada.

Anos mais tarde, o meu pai contou, na minha presença, a um grande amigo seu que, ao ver o filme espiritual, corroborou as suspeitas dos meus pais. Calaram-se, aterrados com a audácia do homem para a realização do mal. Optara por prejudicar uma criança para salvar o animal, símbolo da sua vaidade.

Por: Fátima Nascimento

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