Quarteira

Reencontro de sobreviventes de naufrágio há 58 anos

Um grupo de amigos de longa data reuniu-se num almoço no Snack Bar Kapital, na Travessa Afonso III, em Quarteira. A iniciativa partiu de Manuel Madeira, segundo o qual, “este almoço teve como objetivo o reencontro de um amigo que há mais de 40 anos não vinha aqui a Quarteira, vive agora em Lagos, com outro amigo. Os dois, Joaquim José de Oliveira Vairinhos e Florinto Bota, mais conhecido por “Sardinhita”, foram os únicos sobreviventes de um naufrágio há muitos anos, e mais uns quantos amigos de infância”.

Joaquim José Vairinhos recorda o episódio do naufrágio ao PlanetAlgarve: “No dia 25 de maio de 1956, fomos para a pesca para a zona de Olhão porque na altura não havia pesca em Quarteira. Logo em frente ao antigo Forte Novo, que já não existe, apanhámos o mar atravessado e o barco quase que lá ficou. Continuámos, comigo quase sempre ao leme do barco. Tinha então 16 anos mas o meu pai tinha confiança em mim. Depois, em frente às Barreiras, que é hoje Vale do Lobo, veio uma onda bastante grande a rebentar e eu dei a popa ao barco para não apanhar a onda atravessado. Acontece que o barco morreu e ficou cheio de água. A partir daí, ficou tudo encharcado. Eu fiquei com o Manel Cabeça no barco e o Sardinhita – como era conhecido o meu primo direito Florindo, então com 17 anos – e o meu pai nadaram em direção a terra. Na altura, andava com um barco com o gambau, que era a vela mais pequena que existia e, passado algum tempo, o barco começou a afundar, eu também nadei para terra e o Manel Cabeça, que não sabia nadar, ficou lá. Passadas quatro ou cinco braçadas, olhei para trás e já não o vi. Passadas umas horas, apanhei o meu pai que me disse que o Sardinhita ia ali à frente. Depois, apanhei o Sardinhita, que era mais fraquito que eu e também ficou para trás. Passado algum tempo, já próximo da terra, deu-me uma cãibra. Para minha sorte, julgo eu, a maré estava em preia-mar e, na altura, a maré fazia uma barreira de areia e a onda atirou-me lá para cima. Depois, apareceram dois amigos que nos ajudaram e eu disse-lhes que o Sardinhita vinha atrás de mim e que o meu pai vinha mais atrás. Quando apareceu o Sardinhita, já não tinha forças. Já andava a rolar com as ondas. Se eu tivesse ficado com eles, tínhamos lá ficado todos. Felizmente, ainda cá estamos os dois. Morreu o Manel Cabeça e o meu pai, que apareceu no dia seguinte, na Praia de Faro, que na altura era a Barrinha. O meu tio João quis trazê-lo para Quarteira mas, na altura, para passar uma comarca, ou um cemitério, tinha que pagar um x e na altura não havia dinheiro para essas coisas. Então, a Guarda Fiscal da Barrinha disse que o corpo não podia ser retirado dali enquanto o médico não com firmasse o óbito. Entretanto, o médico chegou e a água que ele tinha dentro não enchia uma mão e ele disse que tinha morrido por falta de auxílio porque não teve ninguém que o ajudasse. Ainda foi dar à parte seca da areia, gatinhou, gatinhou mas não resistiu mais e ali ficou. Passados 7 dias, estávamos na Igreja de Quarteira quando alguém apareceu e disse que estava um homem morto na Abertura, hoje Praia do Hotel Dom José. Fomos para lá, andava um vulto às voltas na água e o Simplício que era um gajo maluco com uns copos valentes, jogou-se para a água, pôs um braço à volta do corpo e trouxe-o para terra. Era então esse Manel Cabeça que tinha desaparecido com o barco uma semana antes. O corpo estava muito inchado, totalmente irreconhecível. Ninguém o reconhecia mas quando o seu filho João chegou, disse que era o pai porque tinha o nome gravado no braço”.

Após este episódio de sobrevivência, veio a separação. Joaquim José Vairinhos recorda: ”Fui para Angola em 1958 com a minha mãe, então viúva, a minha irmã, o meu cunhado, que já faleceu, e o meu sobrinho. Fomos para Angola porque um tio da minha mãe soube que ela tinha ficado viúva e chamou-nos para lá. Em 1959 assentei praça, fiz o meu tempo de tropa, em 4 de fevereiro de 1961 começou o terrorismo em Angola e em março chamaram-me novamente. Fiquei no exército até 1963. Entretanto, a malta começa a concorrer para a PSP e eu concorri também. Entrei na PSP, fui para Luanda, concorri para o Sul de Angola, para Benguela, onde tinha a minha mãe e fui colocado a 30km. Depois, fui para Benguela, casei, em 1975, regressei ao Continente, onde cheguei no dia dos meus anos, 18 de setembro. Tinha mulher, 3 filhos e não tinha dinheiro e no dia 19 comecei a trabalhar na pesca com o Cristóvão Cravinho, já falecido, que na altura tinha um barco e também tinha vindo de Angola. Ele puxava a rede de um lado e eu puxava do outro. Passados 30 dias, fiquei com uma perfuração no estômago e fiquei internado no Hospital de Loulé. Quando chego ao pé da cama, vejo os lençóis amarelos, sujos e a cheirar mal. Pedi lençóis lavados e logo o doente da cama ao lado disse: «Olha olha. Ainda agora chegou e já quer lençóis lavados. Eu estou aqui há 3 meses e ainda não me deram nenhuns». 7 dias depois tive alta e cheio de piolhos. Em 6 de janeiro de 1976, fui integrado na PSP. Entretanto, aconteceu outra coisa bem dolorosa. Um vizinho meu que tinha um restaurante pediu se lhe arranjava uns 10kg de chocos dos pequeninos. Na altura, eu tinha um barco e disse-lhe que no dia seguinte – 7 de agosto de 1976 – só entrava às 4 da tarde, de serviço na Esquadra de Lagos, e que de manhã iria à pesca. Fui à pesca às 7 da manhã, chego às 11 e tal, fui entregar os chocos ao Sr. Figueira e fui para casa almoçar. Depois, fui para a esquadra, entrei às 15:45 e às 19 horas recebo uma chamada a dizer que tinha a mulher morta com um tiro na cabeça com uma bala da minha pistola particular. Isto, em agosto, no Algarve, a gente vê-se aflita para andar um metro, ia no carro-patrulha, mando ligar a sirene, chego a casa com duas ambulâncias à porta, montes de gente e um bombeiro, que era meu vizinho, estava a massajar a mulher. Eu disse-lhe: «Oxigénio, porra!». Pôs-lhe oxigénio e o corpo nem se mexeu. Fiquei então com dois rapazes de 13 e 15 anos e uma filha com 16. Passados dois anos voltei a casar, depois descasei-me e casei-me outra vez, depois voltei a descasar-me e casei-me mais uma vez, voltei a descasar e casar e agora descasei-me outra vez. Cheguei a subchefe ajudante da Esquadra de Setúbal, entretanto reformei-me, tenho um bote e vou à pesca de vez em quando. Tem sido assim a minha vida”.

Florindo Bota ‘Sardinhita’ disse-nos que estava tudo contado e muito bem contado. No entanto, apenas acrescentou que também ele foi para Angola, onde esteve ligado à pesca. No regresso, protagonizou uma outra odisseia, mas desta vez com proporções bem mais gigantescas, recordando: “Saí do Montijo em 1965 e quando rebentou a guerra regressei ao Continente. Parti de Luanda no meu barco, uma embarcação de 12 metros. Ao fim de 17 dias, acabou-se a água e bebi água salgada do mar. Quando passei na costa da Serra Leoa, foi a experiência mais terrível da minha vida. Nunca tinha visto um mar tão perigoso. Finalmente, comecei a ver, lá em baixo, uma luz de um farol, depois outros faróis e percebi que estava no Cabo de S. Vicente (Sagres). Exclamei: «Finalmente em casa!». Parti de Luanda no dia 25 de agosto e cheguei ao Continente no dia 27 de setembro. Foram 32 dias de viagem, 15 dias a beber água salgada. Quando cheguei, fui de emergência para o hospital, onde me foi diagnosticado problemas na vesícula, que tinha apodrecido por causa da água salgada. Fui operado de urgência, abriram-me a barriga, retiraram-me a vesícula e fiquei assim (mostrando a cicatriz). A história é esta e está tudo dito. Entretanto, há já muito tempo que eu não via este meu primo, que éramos como irmãos, e agora, por felicidade, estivemos os dois juntos”.

Regressado a Quarteira, aqui tem feito a sua vida até hoje. Ao longo de todo este tempo, os dois sobreviventes do naufrágio de 1956 pouco se têm encontrado. Florindo Bota uma vez disse ao amigo: «Ainda morro sem te ver». E foi assim que surgiu este almoço. Trocaram os contactos de telemóvel e Joaquim José Vairinhos prometeu vir a Quarteira mais vezes para rever os seus amigos, em especial o companheiro de naufrágio ‘Sardinhita’, o qual nos confidenciou ainda que já foi 4 vezes às televisões falar da sua odisseia no regresso de Angola.

Neste almoço, reuniram-se à roda da mesa os seguintes amigos: Manuel Possolo Viegas; Manuel Madeira; Joaquim José Vairinhos; Florindo Bota; Florindo Bota; Joaquim Rita; Aquilino; Dagoberto Martins; Gonzaga Vairinhos; e Filipe Viegas.

Após o almoço, a confraternização continuou num snack bar na Rua da Cabine, onde Joaquim José Vairinhos reencontrou algumas amigas da infância e da adolescência.

Por: Jorge Matos Dias / PlanetAlgarve

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