A PAS – Plataforma Água Sustentável, constituída por ONGs de âmbito nacional, LPN e Quercus, associações ambientais e de cidadania, A Rocha Portugal, Almargem, CIVIS, Faro 1540, PROBAAL, Regenerarte, e movimentos de cidadãos, Água é Vida, FALA – Forum do Ambiente do Litoral Alentejano, Glocal Faro, apresentou a sua oposição ao alargamento da área de Regadio no Algarve na consulta pública relativa ao Regadio 2030.

Objetivo e Autoria do documento
Atendendo ao objetivo do Estudo Regadio 2030 objeto da presente consulta – a identificação e caracterização dos investimentos a realizar na próxima década e no decénio seguinte no âmbito do regadio público, em Portugal Continental, constatámos com estranheza que a Direção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR)- Autoridade Nacional do Regadio é identificada como uma mera “Entidade do repositório histórico e legal”. Essa estranheza aumentou quando verificámos que a Entidade Coordenadora e Editora do documento é a EDIA – Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva, SA. Efetivamente, não nos parece curial ser a empresa gestora de um dos Aproveitamentos Hidroagrícolas (AH) existentes a apresentar uma proposta de investimentos de nível nacional que beneficia igualmente o empreendimento gerido pela própria empresa autora da proposta. A isso chama-se ser juiz em causa própria e gostaríamos que a DGADR nos esclarecesse sobre a opção de ser a EDIA a apresentar uma proposta que, na nossa opinião, deveria ser da autoria do Estado Português.
Propostas ao nível nacional
Assinalamos a incongruência de, a nível nacional se prever a instalação de 134.337ha de novos regadios, com um valor de investimento estimado de 1.220,69 M€, quando no próprio texto se assinala que “… os cenários de evolução climática para Portugal até ao final do século XXI, de acordo com os modelos climáticos e os estudos desenvolvidos, quer ao nível do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), quer da União Europeia apontam para condições progressivamente mais desfavoráveis para a atividade agrícola e florestal, decorrentes da redução da precipitação e aumento da temperatura, do agravamento da frequência e intensidade dos efeitos climáticos extremos e do aumento da suscetibilidade à desertificação”. De acordo com a proposta apresentada, desses 134.337ha de novos regadios, 50.000 ha (37%) serão instalados para aumentar a área regada pelo Alqueva, quando se reconhece que quando foram feitos os estudos iniciais do AH a precipitação anual era de 650 a 700mm e atualmente é de 350 a 400mm / ano.
Da mesma forma, no texto também se destaca que “as regiões situadas a norte do rio Tejo (litoral e centro) têm precipitações anuais superiores à média do país, apresentando as regiões a sul e do interior norte valores significativamente inferiores. As bacias hidrográficas dos rios Minho e Lima apresentam os valores mais elevados de precipitação anual média (superiores a 2000 mm), enquanto a bacia hidrográfica do rio Guadiana tem o valor de precipitação anual média mais baixo, na ordem de 550 mm”. Face a estes dados seria de esperar que a maior parcela de investimento fosse feita nas regiões onde há mais garantias de disponibilidades hídricas. No entanto, em termos do investimento as regiões Norte (314,19M€) e Centro (657,28M€) só beneficiam de cerca de 49% do investimento total previsto (1.988€). O investimento total previsto para o Alentejo (605,71M€) e Algarve (80,75M€) é de 34% do total. Salientamos, no entanto, que a Barragem do Pisão, no Alentejo, como um investimento estimado de 168M€ apesar de ter conclusão prevista para 2027, não está incluída no valor de investimento previsto para a região. Se o valor de investimento da Barragem do Pisão fosse considerado para o cálculo do investimento global teríamos 40% do investimento a sul do tejo em contraponto com 45% para o conjunto das regiões do Norte e Centro o que é incongruente com as previsões de evolução da pluviosidade para as diversas regiões de Portugal e com as conclusões do Relatório do Estado do Ambiente 2020/21, da APA, que salienta o período de 2019/2020 terminou com as bacias a sul do Tejo “em situação de seca hidrológica.” Já em 2018 o Tribunal de Contas Europeu salientava o risco acentuado de desertificação no sul de Portugal e aconselhava que praticassem culturas adaptadas às disponibilidades de água e que se procedesse à reversão da degradação dos solos até 2030, conforme estabelecido pela Comissão Europeia. A presente proposta ignora todos esses contributos e propõe a instalação de cada vez mais área regada, apesar de não haver garantias da disponibilidade de recursos hídricos e do incentivo que isso representa para a agricultura intensiva que destrói os solos, esgota e polui os aquíferos subterrâneos e destrói a biodiversidade.
As propostas apresentadas não têm quaisquer dados de base que as suportem. Não há informação sobre os recursos hídricos existentes e previsíveis, nem em quantidade nem em qualidade, sobre os consumos estimados e sobre a área máxima que será possível regar tendo em linha de conta os consumos previsíveis da atividade agrícola, a garantia de caudais ecológicos e a constituição de uma reserva estratégica que garanta no futuro água potável em quantidade e qualidade para o consumo humano. Essa lacuna é tanto mais grave quanto, tal como o estudo indica, Portugal utiliza na agricultura 75% dos recursos hídricos disponíveis em contraponto com a média europeia de 25%.
Propostas para o Algarve
No diagnóstico que é feito para a região perpassa a ideia, errada, de que a pressão de utilização dos recursos hídricos decorre do abastecimento público urbano “com capitações muito acima da média habitual e com pico de pedido precisamente na época de estiagem”
Como podemos ver no gráfico abaixo, divulgado no PREHA, a agricultura consome cerca de 56,8% do volume total de água captada no Algarve enquanto que o abastecimento urbano consome cerca de 34% do recurso.
De acordo com informações da APA, as origens da água captada são:
Agricultura – 25% superficial
– 75 Subterrânea
Ab. Público – 94% superficial
6 % subterrânea
É, portanto, no mínimo sem fundamento a afirmação que é feita no texto de que “Esta problemática obrigou mesmo a que se tivesse recorrido recentemente a importantes extrações subterrâneas nalgumas zonas para atender ao abastecimento público”.
De acordo com o texto em análise “Na região Algarve as intervenções a realizar, no que diz respeito à implementação de novos regadios passam sobretudo pela integração de regadios privados existentes, abastecidos por origens subterrâneas, em regadios coletivos abastecidos por origens de superfície, de modo a preservar os recursos hidrogeológicos, numa região particularmente suscetível à intrusão salina”.
A intenção é boa, no entanto peca por informação deficiente. A intrusão salina de que se fala decorre da utilização de volumes excessivos de água subterrânea pela agricultura, mas essa é só uma parte dos danos que a atividade provoca nos aquíferos. Complementarmente ao problema da intrusão salina, todos os aquíferos da região estão poluídos com contaminantes (fertilizantes e pesticidas de síntese) oriundos da atividade agrícola e as mobilizações de solos que a agricultura intensiva pratica destroem os pontos de recarga dos aquíferos acrescentando ao problema da falta de pluviosidade o problema da falta de recarga que se verifica na região já há vários anos .
As propostas que são apresentadas no documento vêm em forma de hipóteses focada numa só solução:
“Uma solução poderá ser a da execução de pequenos açudes-móveis em locais estratégicos que assegurem a garantia para resposta ao pedido de abastecimento público, quer no Barlavento quer no Sotavento, em períodos de escassez …e retirando pressão e disponibilizando os recursos hídricos de superfície necessários à agricultura de regadio e permitindo mesmo alguma permuta pelo uso de recursos superficiais para benefício de áreas agrícolas hoje servidas através de furos. Esta estratégia não só aumentará a sustentabilidade do regadio como contribuirá para a preservação dos aquíferos”.
A instalação de pequenos açudes móveis para retirar a pressão sobre os aquíferos subterrâneos parece uma boa iniciativa. No entanto, com a crescente escassez de pluviosidade a eficácia da intervenção é duvidosa e a utilização prevista para essa água maximiza a pressão sobre o recurso. De facto, transformar regadios privados em públicos implica uma obrigatoriedade de fornecimento de água que atualmente não existe e expandir as áreas de regadio aumenta igualmente a pressão sobre o recurso o que não é razoável no atual cenário de alterações climáticas. Complementarmente, na caracterização da agricultura de regadio do Algarve (que fazem na pág 323/4 e repetem na pág 337) dizem, nomeadamente, que “As origens de água são os recursos hídricos superficiais, provenientes dos sistemas Odeleite- Beliche e Silves, situados nas “extremidades” da região, e os recursos hídricos subterrâneos, que na região central são quase exclusivamente a única origem de água”. Assim sendo, não se compreende que as intervenções que propõem, para minimizar a pressão sobre os aquíferos, se localizem justamente nas “extremidades” da região quando o problema principal de utilização pela agricultura de recursos hídricos subterrâneos seja na sub-região central.
Outro aspeto que não se compreende é a sobreposição das intervenções propostas com a intervenção prevista no âmbito do PRR (e que, a propósito, também era suposto ser incluída nos investimentos contabilizados no presente documento) de fazer uma captação de água no Guadiana a jusante de Alqueva, sobretudo porque os novos regadios propostos se situam no sistema Beliche-Odeleite que supostamente será reforçado por água oriunda dessa captação. Não concordámos igualmente com essa obra prevista no PRR, nomeadamente pelos seus impactos ambientais, e o documento que agora apresentam vem reforçar a nossa argumentação já que no Regadio 2020 incluem uma “Proposta de implementação de origens de água, nos afluentes do Guadiana a jusante de Alqueva, para serviços de ecossistema – de modo aumentar a garantia de caudal ecológico no rio Guadiana, sobretudo no semestre seco de forma a diminuir a pressão sobre os volumes armazenados em Alqueva”. Obviamente, a realização da obra de captação de água no Guadiana comprometeria ainda mais a disponibilização dos caudais ecológicos necessários para o normal funcionamento dos ecossistemas a jusante do Alqueva.
Conclusões
Resumidamente, e tal como o texto salienta “Existe uma situação de seca crónica nos últimos anos na região” e a previsão é que a situação vai piorar. Não concordamos com as intervenções propostas para o Algarve porque dispomos já de capacidade instalada de captação de água em barragens. Acontece é que devido à escassez de pluviosidade essas barragens têm todas baixo nível de captação. Em dezembro de 2021 o nível das barragens do Algarve era:
- Odeleite: 53,5% – Desde 2019 está abaixo da média;
- Beliche: 45,7% – Desde 2019 está abaixo da média;
- Bravura: 14,3% – Média 56,8%
- Arade: 46,8%
- Funcho: 66,5%
- Odelouca: 52%
A maior parte das barragens da região estão desde 2019 abaixo da média de captação calculada a partir do ano de construção. Construir mais captações não vai trazer mais chuva para a região e se houver chuva a capacidade de armazenamento que temos instalada é suficiente. A intenção de instalar açudes não é, em si, desadequada. Poderiam ser usados para hidratar a paisagem e recarregar ao aquíferos a jusante das captações. No entanto, instalar essas infraestruturas para transformar regadios particulares em públicos é colocar uma pressão maior sobre o recurso água. Tal como conclui o Tribunal de Contas Europeu no seu relatório recentemente publicado “Utilização Sustentável da Água na Agricultura” o resultado da modernização dos sistemas de irrigação não resulta necessariamente em menores consumos, já que essas poupanças são redirecionadas para culturas que exigem maiores dotações de água ou utilizadas para aumentar as áreas irrigadas. Complementarmente passa a haver uma responsabilidade pública de fornecimento de água incompatível com a situação de escassez do recurso.
É fundamental o controlo real dos consumos, por origem. Ou seja, não é possível gerir ou planear nada se não se conhecer a realidade, nomeadamente a questão dos consumos na agricultura, o maior consumidor de água na região e no país.
NOTA: A ARH Algarve/APA informou-nos que todas as propriedades agrícolas com mais de 1 hectare deveriam ter contadores para medir o consumo de água que utilizam, mas a ARH Algarve não tem capacidade de fiscalizar se cumprem a lei, ou se o que pagam corresponde aos consumos que fazem. Também informou que haverá mais de 20000 furos a funcionar sem terem licença de captação, o que inviabiliza uma contabilização objetiva dos consumos.
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