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ESTÓRIAS DE LIVROS VIVOS: «…O Gangue da Raspadinha…»

Um conto do poeta louletano António Dôres (pseudónimo de Miguel Silvestre) que se enquadra numa pequena série de contos a que deu o nome de: Estórias de Livros Vivos.

Não havia pessoa mais azarada do que o Milhafre. Esta ave rara sofria de um azar crónico que desafiava todas as probabilidades estatísticas. Certo dia viajava pela ponte 25 de Abril e azar dos azares, cai-lhe em cima do capô do carro um candeeiro periclitante que se desprendeu do topo da ponte da liberdade. Não foi no entanto o azar o culpado pela situação em que se encontrava agora. Privado da sua liberdade devido às más escolhas que fez ao longo da sua vida, via o Sol nascer aos quadradinhos todos os dias. Contudo, esta experiência extrema dava-lhe capacidades de enquadramento e perspectiva que se desenvolviam a cada dia que se passava. Tempo não lhe faltava para reflectir e pensar no futuro.

Foi num dia alegre e solarengo que começou a magicar uma estratégia. Fugir dali para fora e arranjar uns «sócios» para tomar nas suas próprias mãos o rumo da sua sorte (diga-se, má-sorte, pois o rumo que as coisas tomaram assim a sorte ditou). Não teve dificuldade em encontrar comparsas para o acompanhar no seu projecto. A casa onde vivia estava cheia de actores duvidosos, cada um com as suas habilidades específicas. Falou com o Manhoso, com o Esquivo, com o Artimanhas e com o Labrusco. Tudo alcunhas adquiridas no xilindró que era um meio propício a criar personalidades e alter-egos. Estava a trupe formada. Só tinham de fugir da pildra e abraçar a sorte. Ao fim de alguns meses lá conseguiram fugir. Mas em vez de fugiram para os confins do «cu de judas», colocaram imediatamente em prática o plano do Milhafre. Dirigiram-se à Tabacaria mais próxima da prisão e roubaram 10.000 euros em raspadinhas. Também roubaram tabaco, mas as raspadinhas é que eram o verdadeiro tesouro. Meteram tudo em sacos e cada um, carregando a sorte às costas, lá foi seguindo em fila indiana o percurso definido pelo Milhafre, todos em direcção a Monsanto onde fariam uma paragem para avaliar o verdadeiro valor do saque. Eram 10.000 euros em raspadinhas no valor de 1 euro cada uma. Dividiram tudo pelos cinco e começaram a raspar uma a uma:

– Ora bem… Esta não tem nada!!

– Aquela também não tem!!

– Vamos raspar mais uma…

E outra… e mais outra e depois outra. De prémios nada. A sorte não lhes batia à porta. A esperança levava-os sempre a raspar mais uma. Raspa aqui, raspa ali, raspa, raspa, raspa, raspa acolá, raspando freneticamente sem parar. Cada vez mais desesperados, cada vez mais exaustos. Os dedos já lhes doíam de tanto raspar:

– É só mais uma, agora é que é…!!…

– É agora, é agora, é agora…

Mas a sorte não queria nada com eles. Rasparam o primeiro maço, rasparam o segundo maço… rasparam até não poder mais. Com os dedos em sangue de tanto raspar, pegaram na última raspadinha que restou. Nesta raspadinha estava depositada toda a esperança destas cinco alminhas. Era o seu futuro que estava em jogo. Era o tudo ou nada. Era a sorte que chamava por eles e que lhes Gritava pela lotaria instantânea uma ordem para cumprir…

– Raspa-me, raspa-me, raspa-me!!!

Como só restava uma, decidiram que seriam todos os cinco a raspar. Em conclusão. Rasparam com tanta força que danificaram o bilhete. Mas para espanto de todos a sorte parecia bater-lhes pela primeira vez à porta. O bilhete miraculosamente tinha um prémio de 10.000 euros. Guardaram-no religiosamente e no outro dia de manhã foi o Milhafre, o mentor da façanha, receber o prémio na mesma casa onde tinham subtraído as raspadinhas. O dono do estabelecimento, que já tinha feito queixa na polícia, tinha o negócio em funcionamento para tentar recuperar dos prejuízos que havia sofrido pelo roubo da noite anterior. Recebeu o bilhete das mãos do Milhafre e reparou que o mesmo estava bastante danificado e que a área que dizia «não raspar» tinha sido completamente raspada. O bilhete tinha ainda alguns números da sorte que não se conseguiam identificar bem, pois a força com que rasparam foi tanta, que quase romperam o cartão, a raspadinha continha também algumas manchas de sangue. O código de barras estava danificado e como é óbvio, o bilhete não passou na máquina…

– Não lhe posso pagar o prémio!

Disse o lojista ao Milhafre:

– O bilhete está danificado. Não há nada que possamos fazer…

Enquanto isto o dono do estabelecimento fazia sinal à mulher por debaixo do balcão para chamar as autoridades (pois havia identificado o nº do Lote a que pertencia a raspadinha em questão). Milhafre desdobrava-se em reclamações, exclamações, impropérios e explicações. Não demorou a aparecer a polícia que o caçou logo ali em flagrante delito. Chegar aos comparsas do crime não seria muito difícil pois todos estavam na expectativa de saber se o Milhafre tinha conseguido levantar o prémio de 10.000 paus. Todos acabariam por ser engaiolados novamente mais tarde. Contudo Milhafre, agora à luz do dia, à medida que saía do estabelecimento algemado pela polícia, ainda teve tempo de olhar já no exterior para o reclamo em letras néon coloridas que adornava tão azarada casa mesmo ao topo da entrada. O reclamo dizia:

– «Casa da Sorte». (Leu o Milhafre pensando na ironia…)

Milhafre, assim prostrado e humilhado, mas não resignado, murmurou algumas palavras entredentes: – «Só sai a quem joga!!»… Um dos polícias que o acompanhava, escutou esta exclamação de Milhafre e segredou-lhe paternalmente ao ouvido: – «Só perde quem compra!!»

#Vou desistir das raspadinhas e ficar-me pelo Euromilhões!!#1

(…pensou o Milhafre…)

«(…) A sorte não é só feita de ocaso, mas também de trabalho e esforço investido, é feita de saúde de quem a tem, força, energia e acreditar, é feita de inteligência e sentido de oportunidade. Tudo o que resta, é aleatório… (…)»

Miguel Silvestre

Loulé, 24/09/2024

1 A utilização do símbolo # para delimitar um pensamento num diálogo ou num texto em que é necessário transcrever ou referenciar o mesmo, evita a utilização de expressões como por exemplo: pensou o; pensou que, cogitou o, cogitou que. O sinal #, é perfeito para delimitar um pensamento que se apresenta assim contido entre dois cardinais: #…(pensamento)…#.

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