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ESTÓRIAS DE LIVROS VIVOS: «…O Casarão…», por Miguel Silvestre

Miguel Silvestre

Era um velho Casarão. Imponente, enigmático… Um edifício com História… Velho mas robusto. Tinha muitas estórias para contar. Era uma casa citadina, plantada mesmo ao lado da Praça da República. Magnífico aquele edifício. Cheio de orgulho, emproado, cheio de alma e segredos…

O Casarão tinha três andares superiores, sem contar com o rés-do-chão. O piso térreo era constituído por uma funerária que ocupava todo o espaço disponível duma ponta à outra do edifício.

Nas traseiras do prédio, havia um quintal e um anexo de razoáveis dimensões, onde funcionava uma pequena e modesta «casa de pasto» não legalizada (uma mistura de «taberna» com classe com um restaurante de 3ª categoria) que servia refeições, excelsas iguarias para saciar o palato do Zé Povinho, cobradas a módicas e acessíveis quantias. Mas tudo com muito sigilo e discrição. Todos os moradores do Casarão eram frequentadores deste espaço marginal. Comensais assíduos comendo calados os petiscos lá cozinhados.

À quinta-feira, era servido o famoso «Pato à República». O prato da casa. Um excelso petisco de pato assado, guarnecido com as hortícolas que eram cultivadas no quintal do Casarão, recheado com um pequeno limão introduzido meticulosamente nas entranhas do animal (tão honrosa ave, previamente marinada em molho de laranja, com um toque floral de água-ardente de rosas). Todas as semanas, chegavam a este anexo carrinhas recheadas de patos congelados, devidamente conservados nas respetivas câmaras frigoríficas, alimentando o negócio do «Canard à la République».

Como tentava explicar no início, o prédio, dividia-se em duas alas. Os habitáculos da esquerda e os da direita.

No primeiro andar, viviam dois pensionistas. Um deles, o que habitava o apartamento da direita, era um velho marinheiro que passou a sua vida toda embarcado trabalhando arduamente em alto-mar na pesca do bacalhau. Quanto ao habitante do primeiro esquerdo, teve como profissão o negócio de compra e venda de carros usados.

No segundo piso, habitavam duas sexagenárias, estando o apartamento ao lado vazio.

E finalmente no terceiro e último andar, viviam dois casais jovens. O casal do apartamento da direita trabalhava numa conhecida empresa de retalho. Quanto ao casal do apartamento da esquerda, trabalhava em regime de teletrabalho a partir de casa para uma empresa de Marketing Digital.

Embora todos se preocupassem com a conservação das suas habitações, o Casarão Centenário estava a precisar de muitas obras, pois infelizmente ninguém se preocupava com as partes comuns. Apesar da imprudência tudo corria bem. Não fosse a pandemia que assolava o País já numa fase transitória de desconfinamento progressivo.

Resumidamente, vou tentar explicar o que aconteceu… Todos eram obrigados a usar máscaras. Todos optaram pelas máscaras descartáveis que displicentemente colocavam nas sanitas ao fim-do-dia. Como o casal jovem da ala direita que vivia no terceiro andar ia trabalhar todos os dias depositavam mais máscaras nos sanitários. O casal jovem da ala esquerda que trabalhava em casa, consequentemente, descartava menos máscaras, mas mais preservativos pela sanita abaixo. A meio do prédio, as duas sexagenárias viviam a sua vida numa pandega constante. Tudo com muita discrição e sigilo. Era o chá das cinco, as reuniões com as amigas da Universidade Sénior e as sessões noturnas para esconjurar o mau-olhado. Mas como não saíam quase nunca à rua, a não ser para ir almoçar ao «restaurante» do anexo, não produziam muito lixo. Quanto aos anciãos do primeiro andar, que eram bastante poupadinhos (ambos solitários e solteirões), não faziam muito «cisqueiro» no edifício. Mas como todos contribuíam com a sua quota-parte de detritos e de incúria, lá entupiram a coluna de esgoto do prédio que começou a produzir infiltrações nos diversos apartamentos. Imprudentemente não fizeram obras nas partes comuns. Como o Casarão era já velho, três preservativos, dois pensos higiénicos, três fraldas para a incontinência urinária e oito máscaras nos sanitários foram a gota de água. A estrutura começou a ceder rebentando os canos e produzindo fissuras nos tetos dos diversos apartamentos. Foi uma sorte o prédio não ter ido abaixo.

Depois de tudo processado, com advogados à mistura, lá encontraram um expediente para se livrarem do imbróglio. Meteram as culpas na «casa de pasto» dizendo que foi a gordura acumulada no cano do exaustor que provocou o incêndio que se seguiu ao entupimento da coluna de esgoto. Até o dono da funerária não escapou ileso. Pois todos olharam com desconfiança para o inocente «empacotador» como o principal interessado naquilo que se descobriu depois ter sido afinal um «acidente». Aparentemente as águas-residuais que se infiltraram pelo teto e pelas paredes provocaram diversos curto-circuitos que despoletaram o incêndio. – Ainda bem que não morreu gente!! Exclamava o cangalheiro repetidamente para todos os condóminos escutarem… – Ai se alguém tivesse morrido!!Ai se alguém tivesse morrido!!

Miguel Silvestre

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