
As mãos do escritor estavam enregeladas pelo frio. Pegar na caneta para escrever era um suplício pois tinha os dedos dormentes. Para suportar melhor o frio que se fazia sentir em sua casa, bebia alguns tragos de uma garrafa de água-ardente de figo que um amigo “rom” lhe havia oferecido umas semanas atrás.
Este homem que tinha vindo em tempos procurar a sua ajuda, oferecia-lhe agora a salvação que lhe faria suportar melhor o inverno.
A água-ardente tinha um travo forte a lenha queimada, mais forte do que o sabor do figo, pois havia sido destilada numa panela ao lume de lenha e de uma forma completamente artesanal.
Mas isso não interessava para nada. Servia perfeitamente o propósito de lhe aquecer o corpo. Assim já conseguia escrever durante algum tempo.
Depois, quando passava o efeito do álcool e o corpo começava a arrefecer abruptamente, era forçado a deitar-se na cama com várias mantas por cima para se manter quente. Passava assim os dias, dividido entre o trabalho e a escrita.
Escrita essa que iniciava à noite depois da hora do jantar (o seu passatempo que o ajudava a manter a sanidade mental). Ainda não havia publicado nada, mas escrevia.
Escrevia sempre na esperança de publicar um dia. De dia, quando caminhava pelas ruas da Cidade à hora do almoço, observava as pessoas que se cruzavam com ele. Imaginava cenários e circunstâncias, mas também colecionava factos da informação que lhe ia chegando às mãos de forma fragmentada e por diversos canais.
Aproximava-se o Natal e esta podia ser uma estória comum a tantas outras pessoas que olham e observam o mundo à sua volta. Contudo, o que aconteceu naquele meio-dia à hora do almoço, marcaria a sua memória para sempre. Encontrou na rua um rapaz que o conhecia.
Perguntou-lhe se já havia almoçado (embora já soubesse a resposta) e este respondeu que não. Convidou o jovem para o acompanhar à hora de almoço e ofereceu-se para lhe pagar o mesmo que ele próprio iria comer. Uma bifana. O rapaz agradeceu educadamente mas recusou a bifana. Disse-lhe que lhe doíam os dentes e que não conseguia comer. Mas contudo far-lhe-ia companhia à hora do almoço.
Até aqui posso afirmar que aconteceu realmente assim. Depois deste marco da memória, alguns pormenores parecem um pouco turvos e esbatidos. Não sei se o escritor sempre pagou a bifana ao jovem, se este por fim a aceitou porque estava cheio de fome, ou se lhe deu dinheiro para que pagasse a consulta no dentista
Esta foi a penúltima vez que o viu. Passaram-se alguns anos, e o rapaz agora já um homem adulto (pelo menos aos olhos da nossa ufana cultura) cruzou-se com ele na rua. Vinha acompanhado por outros jovens que observaram o carinho com que o cumprimentou. Trocaram algumas palavras e cada um seguiu à sua vida. Lembrava-se que o rapaz um dia lhe disse que gostaria de aprender a tocar guitarra. Era um bom augúrio. Esse rapaz agora homem, foi interpelado pelos seus amigos que lhe perguntaram em “Caló” se o escritor era homossexual. Ele disse-lhes que não. Que não era. Disse-lhes que simplesmente aquele homem o tinha ajudado em tempos. Disse-lhes que esse homem simplesmente era diferente e pareceu até um pouco incomodado com o que os seus amigos lhe perguntavam. Hoje já nada sei desse jovem ou do que fez à sua vida. Contudo nesse último Natal, no derradeiro e último Natal em que encontrou esse homem, posso afirmar que o poeta deu o seu manuscrito às traças para o devorarem. Um maço de papel bafiento. A sua alma que se perdia entregue ao sofrimento e ao álcool na sombra de um Natal iluminado, vertendo quentes lágrimas salgadas que se diluíam lentamente no chão molhado…
O poeta morria na sua solidão para renascer mais tarde um homem novo. Também poeta sofredor, mas resgatado do inferno pelo Amor e compreensão da única verdade que se pode dizer que realmente foi a sua salvação:
O Amor é tudo e tudo será. Quem não se salva pelo Amor, não mais se salvará…
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