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ESTÓRIAS DE LIVROS VIVOS: «…NA SOMBRA DO NATAL ILUMINADO, VERTENDO LÁGRIMAS…», por Miguel Silvestre

Miguel Silvestre

As mãos do escritor estavam enregeladas pelo frio. Pegar na caneta para escrever era um suplício pois tinha os dedos dormentes. Para suportar melhor o frio que se fazia sentir em sua casa, bebia alguns tragos de uma garrafa de água-ardente de figo que um amigo “rom” lhe havia oferecido umas semanas atrás.

Este homem que tinha vindo em tempos procurar a sua ajuda, oferecia-lhe agora a salvação que lhe faria suportar melhor o inverno.

A água-ardente tinha um travo forte a lenha queimada, mais forte do que o sabor do figo, pois havia sido destilada numa panela ao lume de lenha e de uma forma completamente artesanal.

Mas isso não interessava para nada. Servia perfeitamente o propósito de lhe aquecer o corpo. Assim já conseguia escrever durante algum tempo.

Depois, quando passava o efeito do álcool e o corpo começava a arrefecer abruptamente, era forçado a deitar-se na cama com várias mantas por cima para se manter quente. Passava assim os dias, dividido entre o trabalho e a escrita.

Escrita essa que iniciava à noite depois da hora do jantar (o seu passatempo que o ajudava a manter a sanidade mental). Ainda não havia publicado nada, mas escrevia.

Escrevia sempre na esperança de publicar um dia. De dia, quando caminhava pelas ruas da Cidade à hora do almoço, observava as pessoas que se cruzavam com ele. Imaginava cenários e circunstâncias, mas também colecionava factos da informação que lhe ia chegando às mãos de forma fragmentada e por diversos canais.

Aproximava-se o Natal e esta podia ser uma estória comum a tantas outras pessoas que olham e observam o mundo à sua volta. Contudo, o que aconteceu naquele meio-dia à hora do almoço, marcaria a sua memória para sempre. Encontrou na rua um rapaz que o conhecia.

Perguntou-lhe se já havia almoçado (embora já soubesse a resposta) e este respondeu que não. Convidou o jovem para o acompanhar à hora de almoço e ofereceu-se para lhe pagar o mesmo que ele próprio iria comer. Uma bifana. O rapaz agradeceu educadamente mas recusou a bifana. Disse-lhe que lhe doíam os dentes e que não conseguia comer. Mas contudo far-lhe-ia companhia à hora do almoço.

Até aqui posso afirmar que aconteceu realmente assim. Depois deste marco da memória, alguns pormenores parecem um pouco turvos e esbatidos. Não sei se o escritor sempre pagou a bifana ao jovem, se este por fim a aceitou porque estava cheio de fome, ou se lhe deu dinheiro para que pagasse a consulta no dentista

Esta foi a penúltima vez que o viu. Passaram-se alguns anos, e o rapaz agora já um homem adulto (pelo menos aos olhos da nossa ufana cultura) cruzou-se com ele na rua. Vinha acompanhado por outros jovens que observaram o carinho com que o cumprimentou. Trocaram algumas palavras e cada um seguiu à sua vida. Lembrava-se que o rapaz um dia lhe disse que gostaria de aprender a tocar guitarra. Era um bom augúrio. Esse rapaz agora homem, foi interpelado pelos seus amigos que lhe perguntaram em “Caló” se o escritor era homossexual. Ele disse-lhes que não. Que não era. Disse-lhes que simplesmente aquele homem o tinha ajudado em tempos. Disse-lhes que esse homem simplesmente era diferente e pareceu até um pouco incomodado com o que os seus amigos lhe perguntavam. Hoje já nada sei desse jovem ou do que fez à sua vida. Contudo nesse último Natal, no derradeiro e último Natal em que encontrou esse homem, posso afirmar que o poeta deu o seu manuscrito às traças para o devorarem. Um maço de papel bafiento. A sua alma que se perdia entregue ao sofrimento e ao álcool na sombra de um Natal iluminado, vertendo quentes lágrimas salgadas que se diluíam lentamente no chão molhado…

O poeta morria na sua solidão para renascer mais tarde um homem novo. Também poeta sofredor, mas resgatado do inferno pelo Amor e compreensão da única verdade que se pode dizer que realmente foi a sua salvação:

O Amor é tudo e tudo será. Quem não se salva pelo Amor, não mais se salvará…

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